
Resumo: Da batata frita crocante que pisca na TV ao brinquedo do combo feliz, a publicidade de fast food e de outros alimentos ultraprocessados empurra calorias vazias para crianças e adultos e ajuda a inflar as estatísticas de sobrepeso no Brasil. Neste artigo, mostramos como essa sedução marketológica vira questão jurídica: campanhas que miram o público infantil podem ser consideradas abusivas à luz do Código de Defesa do Consumidor, já renderam multas milionárias no STJ e podem ser barradas pela RDC 24/2010 da Anvisa.
A discussão ganhou fôlego no Congresso com o PL 8.135/2014, que busca regular a propaganda de alimentos não saudáveis. Explicamos o que diz o projeto, os riscos legais e reputacionais para as empresas, e damos dicas de marketing ético para empreendedores alinharem negócio, direito empresarial e promoção da alimentação saudável, sem abrir mão do sabor — mas com responsabilidade.
O que preocupa na publicidade de alimentos ultraprocessados?
Índice
- 1 O que preocupa na publicidade de alimentos ultraprocessados?
- 2 Como a propaganda influencia as escolhas alimentares do consumidor?
- 3 Por que crianças e adolescentes são os mais vulneráveis à propaganda de alimentos?
- 4 Publicidade infantil de alimentos não saudáveis é proibida no Brasil?
- 5 Quais são as regulamentações específicas para publicidade de alimentos no Brasil?
- 6 Quais as consequências jurídicas e os riscos para as empresas?
- 7 Como equilibrar marketing de alimentos e responsabilidade social nos negócios?
- 8 Conclusão
A publicidade de alimentos ricos em açúcar, gorduras ou sódio – os chamados alimentos não saudáveis ou ultraprocessados – gera preocupação generalizada. Mas por quê?
Em primeiro lugar, porque essa propaganda tem sido onipresente e persuasiva, influenciando escolhas alimentares de milhões de consumidores. No Brasil, a grande maioria dos comerciais veiculados na televisão brasileira é de alimentos de baixo ou nenhum valor nutricional, ricos em sódio, gorduras e açúcar, muitas vezes destinados prioritariamente às crianças e adolescentes.
Essa avalanche de anúncios de produtos alimentícios pouco saudáveis cria o que especialistas chamam de ambiente obesogênico, onde se torna mais difícil para o consumidor optar por alimentos saudáveis. Em outras palavras, forma-se um contexto de mercado que estimula o consumo frequente de produtos não saudáveis, influenciando desde cedo os hábitos de consumo alimentares da população.
Do ponto de vista da saúde pública, os efeitos desse cenário são alarmantes. O Brasil enfrenta hoje uma crescente prevalência de sobrepeso e obesidade em todas as faixas etárias.
Dados recentes indicam, por exemplo, que uma em cada sete crianças brasileiras com menos de cinco anos já está com excesso de peso ou obesidade, taxa quase três vezes superior à média mundial. Entre adolescentes, cerca de um em cada três está acima do peso.
Esses números evidenciam que a exposição à publicidade de produtos ultraprocessados – como refrigerantes, salgadinhos, biscoitos recheados e outras guloseimas – contribui significativamente para maus hábitos alimentares e problemas de saúde na população brasileira. Assim, a preocupação central reside em proteger a saúde da população contra os impactos nocivos de campanhas comerciais que promovem alimentos ricos em gordura, açúcar e sal, sem contraponto adequado sobre seus riscos.
Como a propaganda influencia as escolhas alimentares do consumidor?
Não é por acaso que as grandes empresas investem pesado em comerciais de alimentos. A influência da publicidade sobre as escolhas de consumo é bem documentada, especialmente quando se trata de alimentação.
Estratégias de marketing e comunicação mercadológica conseguem moldar preferências e induzir desejos, muitas vezes estimulado o consumo de produtos nocivos à saúde sem que o consumidor perceba plenamente. A indústria alimentícia utiliza diversas táticas: anúncios atraentes na televisão brasileira, propagandas na internet, brindes promocionais, descontos e embalagens chamativas – tudo para tornar seus produtos ultraprocessados mais convidativos.
Essas táticas de persuasão funcionam porque atuam diretamente em fatores psicológicos e culturais: associam, por exemplo, o consumo de certos alimentos e bebidas a ideias de felicidade, sucesso ou status.
Pesquisas indicam que, expostas a essas mensagens, as pessoas são levadas a acreditar que os alimentos ultraprocessados têm qualidade superior ou trazem benefícios, quando na realidade muitas vezes ocorre o oposto.
Um comercial pode sugerir que um determinado cereal matinal açucarado fará a criança mais forte e saudável, ou que um refrigerante com calorias “necessárias para esportes” melhorará seu desempenho.
Essas alegações implícitas ou explícitas levam o consumidor a escolhas de consumo pouco conscientes, dificultando escolhas mais saudáveis.
Por que crianças e adolescentes são os mais vulneráveis à propaganda de alimentos?
Crianças e adolescentes formam o público preferencial de muitas campanhas de publicidade de alimentos não saudáveis, e há uma razão simples para isso: eles são altamente influenciáveis e representam consumidores em formação.
Do ponto de vista do marketing, conquistar a preferência de uma criança pode significar vender não apenas um doce hoje, mas fidelizar um cliente por anos.
Entretanto, do ponto de vista social e legal, essa prática é vista como eticamente questionável e juridicamente problemática, pois explora a deficiência de julgamento e experiência da criança.
Diferentemente dos adultos, crianças pequenas não conseguem compreender plenamente o caráter persuasivo da publicidade – elas tendem a acreditar no que veem nos anúncios, tomando as mensagens comerciais ao pé da letra. Isso as torna um público hipervulnerável nas relações de consumo.
Além disso, os anunciantes utilizam técnicas especialmente apelativas para o público infantil. Personagens de desenho animado, super-heróis, músicas cativantes, brinquedos colecionáveis e linguagem lúdica são elementos frequentes nas propagandas dirigidas a crianças.
Essas estratégias exploram o universo infantil para criar vínculos emocionais com produtos geralmente pouco nutritivos – é o biscoito associado ao herói favorito, o refrigerante com mascote divertido, o fast-food que vem com brinquedo.
Conforme destaca o Guia Alimentar para a População Brasileira, a publicidade infantil faz uso do que as crianças mais gostam para persuadi-las, chegando a associar produtos ultraprocessados ao bom crescimento e desenvolvimento, induzindo pais e responsáveis a acreditar que aqueles alimentos seriam inofensivos ou até benéficos.
Assim, crianças e adolescentes são alvos fáceis porque não possuem senso crítico desenvolvido em relação à propaganda e porque exercem grande influência nas compras da família (o famoso “pedido insistente” ou pester power).
Esse conjunto de fatores torna a publicidade de alimentos dirigida ao público infantil especialmente perigosa – um ponto central para o Direito do Consumidor e a proteção das crianças.
Publicidade infantil de alimentos não saudáveis é proibida no Brasil?
Diante de todo o exposto, surge uma questão prática: afinal, a publicidade de alimentos dirigida ao público infantil é ou não permitida no Brasil?
Embora não exista uma lei específica que diga textualmente “é proibido fazer propaganda para crianças”, a interpretação conjunta do Código de Defesa do Consumidor e de normas de proteção à infância pode levar à conclusão de que essa prática é considerada ilegal por ser abusiva.
A questão foi parar no Judiciário e, em 2016, teve um marco legal significativo: o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar um caso envolvendo a empresa Pandurata (dona da marca Bauducco) por campanha comercial dirigida a crianças, decidiu que a publicidade infantil é ilegal.
Segundo o STJ, anúncios de alimentos voltados às crianças configuram publicidade abusiva em dobro: pela natureza do produto alimentício e por atingirem um público hipervulnerável.
Nas palavras do ministro Herman Benjamin, “não se trata de paternalismo ou moralismo demais, mas de reconhecer que a autoridade para decidir sobre a dieta dos filhos é dos pais, e nenhuma empresa tem o direito de tolher essa autoridade”.
Esse entendimento judicial reforça que a publicidade infantil de alimentos (e de outros produtos) contraria a lei, já que viola diretamente o art. 37, §2º do CDC ao se aproveitar da deficiência de julgamento da criança.
Desde então, outros casos confirmaram essa tendência, e publicidade infantil tem sido alvo de ações civis públicas, multas de Procons e condenações judiciais, consolidando o entendimento de que publicidade dirigida a crianças é, por si, abusiva e proibida no ordenamento brasileiro. Portanto, as empresas precisam estar cientes de que campanhas de marketing direcionadas ao público infantil podem acarretar sanções sérias.
Quais são as regulamentações específicas para publicidade de alimentos no Brasil?
Apesar de o Código de Defesa do Consumidor fornecer a base legal geral, a ausência de uma legislação federal específica para publicidade de alimentos não saudáveis levou órgãos reguladores e o legislativo a buscarem medidas complementares.
Em 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou a Resolução RDC nº 24/2010, que estabelecia regras pioneiras para a propaganda de alimentos com alto teor de açúcar, gorduras e sódio. Essa norma obrigava, por exemplo, que anúncios de refrigerantes, salgadinhos, biscoitos e outros produtos de baixo valor nutricional contivessem mensagens de alerta sobre os riscos à saúde em caso de consumo excessivo.
Também proibia que as propagandas desses alimentos sugerissem que o produto é completo do ponto de vista nutricional ou que seu consumo traz benefícios à saúde, pois isso configuraria conteúdo enganoso.
Em essência, a RDC 24 buscou alinhar a publicidade às diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda evitar o consumo regular de ultraprocessados.
No entanto, a RDC 24/2010 enfrentou forte resistência da indústria de alimentos e de setores da publicidade. Sob alegação de que a Anvisa teria extrapolado sua competência (já que a regulação da publicidade comercial, argumentavam, deveria ser feita por lei federal, não por resolução administrativa), entidades empresariais contestaram a norma na Justiça.
Como resultado, sua aplicação plena foi suspensa por decisões judiciais liminares poucos anos após sua publicação. Até hoje discute-se no âmbito do Supremo Tribunal Federal a validade da RDC, num debate que contrapõe a proteção da saúde pública à liberdade comercial das empresas.
Enquanto isso, diversos projetos de lei tramitam no Congresso Nacional visando regular a publicidade de alimentos não saudáveis. Um exemplo foi o PL 7667/2010, mencionado anteriormente, que pretendia tornar obrigatórias as mensagens de advertência nos comerciais desses produtos e impor outras restrições de conteúdo.
Embora tais projetos não tenham se convertido em lei até o momento, eles refletem a pressão por um marco regulatório mais claro. Adicionalmente, órgãos de autorregulamentação publicitária (como o CONAR) emitem recomendações e regras de ética para publicidade de alimentos e para publicidade infantil – porém, por serem de adesão voluntária, têm alcance limitado.
Em síntese, ainda vivemos em um cenário de regulação fragmentada: o CDC e a interpretação jurídica cobrem os casos flagrantes de abusividade, mas a falta de uma lei específica deixa brechas que a indústria ainda explora, tornando urgente o aperfeiçoamento da regulamentação da publicidade nesse campo.
Quais as consequências jurídicas e os riscos para as empresas?
Para as empresas e empreendedores do ramo alimentício (ou do setor publicitário que os atende), ignorar essas tendências pode sair caro.
As consequências jurídicas de violar as normas de publicidade podem ir desde multas administrativas aplicadas por órgãos de defesa do consumidor, até condenações judiciais em ações civis públicas, obrigando a indenizações e retratações.
No caso paradigmático mencionado (a campanha “É Hora de Shrek” da Bauducco), a empresa foi condenada em danos morais coletivos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e teve a condenação mantida pelo STJ, pagando uma indenização de R$ 300 mil pelos danos causados à sociedade pela campanha abusiva.
Outras empresas já foram multadas por PROCONs por práticas semelhantes, e a jurisprudência tende a se firmar cada vez mais rigorosa contra quem insistir em publicidade infantil ou propaganda enganosa de alimentos.
Além das sanções diretas, há o risco reputacional. Consumidores estão mais conscientes sobre saúde e alimentação saudável; campanhas publicitárias percebidas como manipulativas ou prejudiciais (por exemplo, incentivar maus hábitos alimentares em crianças) podem gerar forte reação negativa do público e da mídia.
Em tempos de redes sociais, uma estratégia de marketing mal calibrada pode viralizar pelas razões erradas, trazendo prejuízo à imagem da marca.
Também não se pode esquecer da possibilidade de boicotes organizados por movimentos sociais ou ONGs ativas nesse tema – como o Instituto Alana, por meio do projeto Criança e Consumo, que vigia e denuncia excessos da indústria de alimentos. Por essas razões, do ponto de vista do direito empresarial, respeitar as normas de publicidade e defesa do consumidor não é apenas uma obrigação legal, mas uma medida de mitigação de riscos.
Empresas envolvidas em relações de consumo sustentáveis tendem a ter mais longevidade e aceitação no mercado. Por outro lado, práticas abusivas podem levar a litígios, perdas financeiras e restrições impostas pelo poder público no futuro.
Como equilibrar marketing de alimentos e responsabilidade social nos negócios?
Diante desse contexto, empreendedores e gestores de marketing se perguntam: é possível fazer publicidade de alimentos de forma eficiente e responsável?
A resposta passa por inovação e ética nas estratégias de marketing. Primeiro, é recomendável evitar veementemente campanhas dirigidas diretamente às crianças.
Produtos voltados ao público infantil podem ser promovidos destacando atributos para os pais (que são os decisores de compra conscientes), em vez de explorar a ingenuidade dos pequenos.
Segundo, transparência e educação podem andar de mãos dadas com a publicidade.
Marcas que comunicam com clareza informações nutricionais, que promovem moderação e consumo consciente, podem conquistar a confiança do consumidor no longo prazo.
Por exemplo, ao invés de anunciar um biscoito recheado como se fosse “fonte de energia para brincar o dia todo”, a comunicação pode ser mais equilibrada, reconhecendo o produto como um docinho eventual, não substituto de refeição.
Iniciativas de marketing de causa e promoção da saúde também estão em ascensão – como empresas que apoiam projetos de alimentação escolar saudável ou campanhas contra a obesidade infantil – demonstrando preocupação autêntica com a saúde da população.
Do ponto de vista legal, compliance em publicidade deve ser palavra de ordem. Isso significa treinar equipes de marketing e agências parceiras sobre os limites legais, consultar advogados especialistas em direito do consumidor ao elaborar peças publicitárias duvidosas e acompanhar atualizações regulatórias.
Hoje, existem materiais e orientações disponíveis (inclusive do próprio Ministério da Saúde e de entidades do setor) sobre publicidade responsável de alimentos. Incorporar essas práticas não é apenas evitar penalidades, mas também alinhar-se a uma tendência mundial: a promoção da alimentação adequada e saudável como parte do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade social empresarial.
Em síntese, empresas que inovarem em práticas de publicidade saudáveis poderão até usar isso como diferencial competitivo, enquanto aquelas que resistirem às mudanças ficarão expostas a riscos jurídicos e de imagem. Para o empreendedor moderno, entender esses desafios e agir preventivamente é parte essencial de gerir um negócio no setor de alimentos ou de mídia.
Conclusão
Em conclusão, a publicidade de alimentos não saudáveis é um tema multidisciplinar que conecta saúde pública, comportamento do consumidor e legislação empresarial.
Os impactos jurídicos desse tipo de propaganda não podem ser ignorados pelas empresas. Ao mesmo tempo, cresce a expectativa da sociedade para que o marketing seja usado de forma ética, sem sacrificar o bem-estar das próximas gerações em prol de lucros de curto prazo. Para fixar os principais pontos discutidos, seguem os aprendizados mais importantes:
- Influência da propaganda: A publicidade de alimentos ultraprocessados influencia diretamente os hábitos de consumo, criando um ambiente que dificulta escolhas saudáveis.
- Vulnerabilidade infantil: Crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis à propaganda e, por isso, publicidade dirigida a esse público é considerada abusiva e ilegal no Brasil.
- Saúde pública em risco: A promoção de alimentos não saudáveis contribui para o aumento de sobrepeso, obesidade infantil e doenças crônicas na população brasileira, o que tornou a regulação desse tema uma prioridade de políticas públicas.
- Base legal existente: O Código de Defesa do Consumidor proíbe a publicidade enganosa ou abusiva, garantindo proteção contra anúncios que induzam a comportamentos prejudiciais à saúde ou explorem a falta de julgamento das crianças.
- Jurisprudência atual: Decisões judiciais recentes (STJ) reafirmam a ilegalidade da publicidade infantil, impondo multas e indenizações a empresas por campanhas de alimentos consideradas abusivas.
- Regulação em evolução: Há tentativas de regulamentação específica (como a RDC 24/2010 da Anvisa e projetos de lei no Congresso) para restringir a publicidade de produtos ultraprocessados, alinhadas a recomendações da Organização Mundial da Saúde.
- Responsabilidade empresarial: Empresas devem adotar marketing responsável, evitando práticas abusivas, para cumprir a lei e reduzir riscos de sanções e danos à reputação.
- Relevância para empreendedores: Conhecer os aspectos legais da publicidade de alimentos é fundamental para qualquer empreendedor do ramo alimentício ou publicitário, garantindo compliance, proteção ao consumidor e contribuição positiva para a saúde e segurança dos clientes.
Ao seguir essas diretrizes, empreendedores e empresas poderão equilibrar seus objetivos de negócio com a promoção da alimentação saudável, contribuindo para um mercado mais ético e sustentável a longo prazo. Em última análise, respeitar o consumidor – especialmente as crianças – é não só uma obrigação legal, mas um investimento no futuro da sociedade e da própria empresa.